Digo que estou com uma dor estranha e que não passa já faz algum tempo. Sou orientado a deitar na maca: dói quando eu aperto aqui? E aqui? Sim, dói das duas formas. Melhor você fazer alguns exames, não está normal mesmo, coloca essa roupa aqui, você vai perder sua dignidade e talvez sofrer os efeitos do perigoso vento encanado, mas é para o seu próprio bem.
Tomo o vento, tomo soro, tomo minha própria saliva quando chega o resultado: você vai ser internado, seu caso é urgente, seu apêndice é podre, que nojo, e além de tudo você é uma pessoa horrível. Não tenho certeza se tudo isso foi dito, nem se foi esse o tom, porque na hora minha cabeça foi para o tanto de coisas que tenho agendadas, não posso ficar internado, tenho compromisso, de repente eu volto amanhã.
Meus argumentos são inúteis: você fica aqui mesmo, ou pode morrer de forma repentina, é isso que você quer? Não quero, por isso aceito o destino. Hoje eu só durmo, mas no dia seguinte me levam, já inchado de apendicite e de remédios que combatem apendicite, o anestesista diz que vou me sentir como se estivesse bêbado, que mentira descabida, quando estou bêbado estou geralmente cercado de gente que conheço e gosto, geralmente vestido, geralmente feliz, e tudo aqui é ao contrário, vocês — meu pensamento é interrompido.
Acordo e com tremendo esforço balbucio, perguntando se deu tudo certo. A dor era menor antes, porque fizeram isso comigo? Agora vem a pior parte. Nos dias que se seguem descubro que meu caso foi complicado e que por isso vou ficar internado bem mais que o comum. Tudo bem, diz meu lado racional, enquanto a criança que habita em mim pensa em arrancar as agulhas dos braços e correr pra casa.
Uma enfermeira muito politizada me conta que amanhã não vai aparecer, todos estão sendo obrigados a fazer um curso de ética. Acho bacana, mentalmente parabenizo o hospital pela iniciativa. Outra conta que todos os pacientes masculinos reclamam muito do avental que deixa determinadas partes do corpo expostas, exceto no caso do Seu Fernando. Ele não se incomodava, pelo contrário, demonstrava prazer, por ele o avental todo podia ser dispensado.
Passo a conhecer a rotina dos funcionários, faço amizade com alguns. A instrumentadora tem um filho que se parece muito comigo mas mora na Europa e a saudade é grande. Ela me mostra algumas fotos: parece mesmo.
A enfermeira que fez o curso de ética reaparece no outro dia, muito formal: vou aplicar agora um antibiótico, ele serve para combater infecções, o Sr. poderia apenas confirmar seu nome completo e sua data de nascimento? Acho engraçado, mas confirmo meus dados e percebo que no curso esse cuidado foi muito enfatizado.
Em uma semana descubro que nem todos os médicos são bem vistos pela equipe de enfermagem, que o remédio que mais dói ao ser aplicado é justamente o que combate a dor e que às vezes é a vida que decide que você vai dar uma pausa — queira ou não.
Publicado na edição 1139 – 14/11/18