O Vestido Laranja

Facebook
LinkedIn
WhatsApp
Telegram
Email

“Vamos matar aula e ir até a casa de um amigo meu que toca violão”, disse meu amigo que tocava violão. Não precisou convidar duas vezes. Poucas horas depois, estava formada minha primeira banda, das tantas que se seguiriam ao longo dos anos. Éramos eu, meu amigo que tocava violão, nosso novo amigo que tocava violão e Bárbara, nossa nova amiga, que tocava bateria.

Éramos Cesium, porque adolescentes, e ruins, porque iniciantes. Mas amávamos. A música era a desculpa que nos reunia porque nos amávamos – horas e noites adentro em ensaios intermináveis, para tocar em lugar nenhum. Fazíamos nossas próprias canções e planejávamos turnês mundiais – porque é fácil crer quando se tem menos de dezoito.

Época de verdades absolutas, como as jovens cabeças estão sempre tão cheias. Renato Russo era o maior poeta de todos os tempos – maior que Drummond, maior que Pessoa. Caetano era coisa de velho chato, cebola era ruim e nenhuma cerveja era suficiente ou suficientemente ruim a ponto de não ser ingerida. E nós éramos os arautos da boa-nova, o bom e velho rock and roll, renovado, pulsante, moderno – pero sin perder la ternura.

Nosso violonista rimava amor com dor, eu tentava não rimar nada para parecer ousado (só ficava ruim), o guitarrista usava palavras que soavam bonitas mas nenhum de nós sabia o que significava.

Bárbara escrevia cartas. Não queria escrever músicas, mas queria contar suas coisas. Na última carta que recebi dela, ela me falava sobre um disco novo do U2 com que tinha sido presenteada e me contava que o vestido laranja que dei a ela ainda estava guardado para uma apresentação futura.

Apesar das mil horas que passamos ensaiando, tocamos em público apenas duas vezes. No mesmo bar, tantas vezes rebatizado por tantos diferentes proprietários, onde por tantos anos voltei a cantar: foi nesse bar que Bárbara tocou bateria usando o vestido laranja que guardou com carinho até sua morte.

Outro dia encontrei no meio das coisas antigas algumas gravações da época, e Bárbara estava lá, ainda sorrindo e fazendo os alongamentos de baterista – todos nós, bobos, rindo de coisas sem graça tão engraçadas na época. Quem ela teria se tornado se tivesse conseguido escutar o disco do U2 todas as vezes que quisesse ao invés de fazer a besteira de morrer aos quatorze anos?

Na cama de baixo do beliche, Bárbara tinha uma frase escrita a caneta, sob o estrado da cama de cima: “eu gosto mais do que nem sempre faz sentido”. Era uma composição nossa – era sua música favorita.

Nenhum palco, nunca mais, foi maior ou mais importante que aquele em que Bárbara tocou sua música favorita, usando seu vestido laranja.

 

 

Publicado na edição 1117 – 14/06/2018

O Vestido Laranja

Compartilhar
PUBLICIDADE