Eu me queimei fazendo uma máscara de jornal

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Era uma quarta-feira pela manhã de 1991 e eu estava provavelmente assistindo o famoso seriado Jaspion quando me lembrei: eu tinha que entregar um trabalho de educação artística naquela tarde: uma máscara feita de bexiga.
O procedimento era simples: encher um balão, colar em torno dele tiras de jornal cortadas previamente até formar uma camada de aproximadamente quatro milímetros. Deixar secar por dois ou três dias. Após a secagem, estourar o balão e cortar a quase-esfera de jornal em duas metades. Caso a pintura final de uma das partes ficasse ruim eu ainda teria a segunda metade para implorar para que um adulto pintasse.
Mas eu tinha quatro problemas: 1) à época, minha habilidade manual era ainda mais parca que hoje; 2) não havia um adulto em casa pra me ajudar em caso de emergência; 3) meu tubo de cola tinha acabado há muito tempo e eu não tinha visto necessidade de repor; e 4) já era dia de entregar o trabalho e eu não teria dois ou três dias para a secagem do material.
Se a falta de competência para executar tarefas manuais era o maior dos problemas, o menor deles era a falta de cola, o que me fez começar a resolver as coisas por ele. Não sei se as crianças de hoje conhecem essa técnica, mas os da minha idade com certeza vão se lembrar que havia um procedimento químico muito em voga no início dos anos 1990 para quando você se via sem cola: misturava farinha de trigo com água e pronto. Estava feita a cola caseira.
Havia agora cola e também havia o balão. Jornal nunca faltou, portanto meus ingredientes estavam todos ali. Tesoura eu não tinha. Rasguei o jornal com a mão mesmo. Olhei no relógio e vi que o tempo urgia. As tiras passaram a ser blocos de jornal rasgado. Os maiores que eu conseguia cortar e colar naquele balão. Eu também não tinha tempo de ficar passando uma “fina camada” de cola, então eu lambuzava o balão e botava jornal, confesso, sem o devido cuidado que a busca da perfeição exige do artista.
A coisa toda virou uma pasta de água, trigo e jornal porcamente colados numa bexiga. Um milagre fez com que aquilo ficasse razoavelmente arredondado. Era possível ver que, se eu pudesse deixar aquilo esquecido por três dias num canto para secar, uma passada de tinta bem grossa seria capaz de alisar definitivamente e essa pressa ficaria em segredo para todo o sempre.
Mas esse o problema mais grave de todos: eu não tinha três dias. Na verdade eu não tinha nem duas horas. Mas então me lembrei do olhar da minha professora. Ela era tão cândida e tinha por mim tanto apreço que eu não poderia jamais causar tão grande desgosto àquela mulher. Ela confiou a mim uma tarefa. Ela queria uma máscara feita de jornal, portanto ela teria uma máscara feita de jornal.
Então me ocorreu que dentro de casa havia um equipamento capaz de reproduzir o calor do sol de forma controlada e concentrada: o forno. Ora, eu só precisava aquecer rapidamente o material e estava tudo certo. Eu já tinha visto minha mãe ligar o forno e sabia como era o procedimento.
Balão com jornal colado com água misturada com trigo devidamente posto dentro do forno, ligado. Eu dominava a ciência. E agora era só esperar o tempo fazer seu trabalho. Planejei bem meu tempo disponível: deixaria por uma hora no forno e usaria a outra hora para pintar (daquele jeito) e retornar a ele para secagem da pintura.
Então eu estava entretido no seriado que voltei a assistir, cantando junto com Jaspion, quando um pensamento muito curioso passou pela minha cabeça: “hmm, a mãe tá fazendo pão”. Porém eu estava sozinho em casa.
Sim. Eu percebi que aquela mistura de trigo e água em abundância era, coincidentemente, a mesma base usada por minha mãe para fazer pão. Voei para a frente do forno ver a quantas andava minha máscara e percebi que talvez eu tivesse me deixado levar demais pelo seriado e não ouvi que o balão estourou, espalhando aquela mistura em cada milímetro do forno.
Naquele momento meu cérebro definiu uma prioridade: limpar aquela sujeira antes que minha mãe voltasse para casa. A professora sofreria sem a máscara? Possivelmente, mas agora já não importava mais – meu instinto estava priorizando minha sobrevivência. E mais nenhum arrependimento prévio era sentido.
Um pano úmido e várias idas até a pia deixaram o forno até mais limpo do que estava inicialmente, fato que infelizmente não me gerou créditos junto a minha mãe porque permaneceu em sigilo.
Guardei trigo, utensílios, tinta, descartei o pano, deixei janelas e portas abertas para ventar e tirar o cheiro de pão da casa, tudo pensando no que dizer à professora quando aparecesse de mãos abanando. Foi só aí que percebi que, no afã de limpar correta e rapidamente o forno, eu encostei na parte ainda quente da lateral e queimei bem feio meu braço.
A professora me deixou entregar a máscara na outra semana. O sol brilhava forte naqueles dois meses seguintes e eu não tirava a blusa. Tenho até hoje o disco do Jaspion. Até hoje, minha mãe nunca soube do meu quase pão.

Desculpa, mãe.

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