O amor e o fundo do armário

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Nunca soube me comportar direito em cerimônias. Lá em casa existe até uma anedota sobre isso: quando meu pai me perguntou quando e onde seria minha formatura do ensino fundamental eu disse que havia sido no dia anterior. Escondi a data por medo e constrangimento de usar um terninho e uma gravata que me fariam deslocado e ridículo.

Não me entenda mal: não acho que terno e gravata sejam sempre ridículos. Alguns amigos meus se vestem assim com frequência e ficam muito elegantes, isso só não acontece comigo. Por sorte não escolhi uma profissão que me obrigue a ser assim, formal. Se eu fosse advogado, por exemplo, minha vida estaria fadada ao incômodo.

O juiz lá, com aquela peruca de cabelinhos falsos e brancos, batendo um martelinho com uma expressão muito, muito grave, eu tendo que manter a seriedade diante disso e ao mesmo tempo gritando coisas em latim e verificando se a camisa ainda não saiu da calça, sabe-se lá o que a plateia atrás de mim estaria pensando de um advogado sem compostura como esse.

Faço o possível para evitar eventos em que o traje formal seja obrigatório. Mas um casal de amigos, insensível à manutenção do meu conforto, resolveu se casar e me colocou entre os convidados. Como é grande a amizade, preciso ir. E como a sensação de deslocamento seria ainda maior se eu fosse de camiseta e bermuda, precisei tirar meu único terno do guarda-roupa para disfarçar a aparência de que ele ficou guardado por uns três anos, quando nos vimos pela última vez.

Procurando minha roupa de casamento no guarda-roupa que ganhei de um amigo, tive que tirar umas coisas do fundo do armário, caixas de sapato velhas, uma roupa de festa junina, coisas assim, e estava nessa empreitada quando vi um objeto metálico que tinha passado despercebido até então. O objeto é um anel de prata, de uns quatro milímetros de largura, com filigranas em forma de flor. Na parte interna, a inscrição “Melhores Amigas – Raquel”.

Não sei quem era a melhor amiga da Raquel, mas tenho razões para acreditar que não é mais. Em um acesso de fúria o anel deve ter sido jogado e caído justamente em um cantinho quase imperceptível do móvel. A inscrição nele dá a entender que havia uma promessa de amizade eterna e maior que qualquer outra, afinal, se todas fossem igualmente grandes, faltariam dedos.

Porque é assim que nós somos. Precisamos que nossa realidade particular seja escrita para se tornar real para os outros. E é por isso que cerimônias são estranhas: se o que está escrito não for verdadeiro, a melhor amizade se torna um anel jogado fora e perdido para sempre, esquecido no fundo de um armário.

Que o amor de meus amigos noivos, já atestado por todos ao redor ao longo dos anos, seja de fato eterno, maior que tudo no mundo, e que seus nomes fiquem para sempre em seus anéis. Que a cerimônia seja apenas um evento qualquer e que o papel seja apenas uma necessária formalidade – que o papel reflita o amor, e nunca o contrário.

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