O pintinho

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Meu tio do interior cuidava de um aviário no sítio dele. De tempo em tempo um pessoal ia lá e enchia o aviário de pintinhos novinhos, amarelos, coisa mais linda. Havia outros animais também – porcos, vacas, cachorros, peixes.

Eventualmente algum boi ficava doente e meu tio precisava aplicar um remédio no bicho. Se você já viu uma seringa usada para remediar gado você sabe que a agulha é uma coisa monstruosa. Logicamente a comparação é feita na hora: você se imagina doente e precisando passar por um sofrimento daquele.

Quando se tem uns oito anos, então, e a imaginação é grande, e o ambiente rural é exceção, você chega a pensar que aquilo é até mesmo capaz de operar milagres.

Literalmente você acredita que aquilo é capaz de operar milagres. Porque você está olhando para um pintinho morto no aviário e imaginando que tipo de doença teria ocasionado a fatalidade. E logo faz a conta: se uma seringa enorme como aquela é capaz de curar um boi, aquele resto de remédio que sobrou no vidro provavelmente é capaz até mesmo de ressuscitar o pintinho.

Você ainda vai levar alguns anos para descobrir que nem todas as doenças têm a mesma causa, portanto nem todas têm a mesma cura, algumas nem cura têm, e mesmo as que têm podem chegar a um estado final e absoluto como a morte, e que não há remédio que faça voltar da morte, nem pintinho, nem boi, nem pessoa, mesmo que você ame a pessoa, mesmo que você tenha muito dinheiro, muito remédio e um médico internacionalmente reconhecido mexendo no paciente – em vez de uma criança de oito anos.

Que ainda não sabe disso, todavia. E está olhando para o pintinho, cuidadosamente colocado sobre uma pia de alumínio – provavelmente a cor da pia, aquela prata metálica, brilhante, dava o ar de limpeza típico das salas de cirurgia, conferindo à cena toda uma aparência muito profissional e evocando sucesso.

Você também sabe que os adultos estão lá do outro lado e está em uma época diferente, em que as crianças têm acesso a seringas e bichos mortos, o que seria impensável nos dias de hoje.

Você olha para o lado, esperando uma confirmação da enfermeira que está com você. É sua prima, quem diria, que mundo pequeno esse, duas pessoas da mesma família acabariam trabalhando no mesmo hospital em que agora está prestes a se desenrolar uma experiência tão inovadora e tão única.
A enfermeira confirma com a cabeça, está na hora. Você enfia a agulha em um lugar aleatório do corpo do pintinho e aplica o conteúdo todo da seringa, atento aos olhos do animal, poderão se abrir a qualquer momento a partir de agora. Termina a aplicação e aguarda.

Nada. Uma nova dose, já que a primeira não foi suficiente. Escolhe outro lugar aleatório, afinal também prevalece a lógica de “quanto mais, melhor”, aliada à “mal não vai fazer, é remédio”.

Ao todo, a equipe aplica umas nove doses antes de concluir, empiricamente, que remédio de boi não ressuscita pintinho. E viva o empirismo.

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