O toca-discos

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Já era tarde, passava de meia-noite (para uma terça-feira era tarde), os copos sobre a mesa já estavam indecisos se aceitavam ou não mais álcool, quando ele chegou, muito feliz, muito rico e muito bêbado. Pensei, por seu tom de voz, que o dia era festivo, o que se comprovou por sua insistência para que o acompanhássemos em uma ou oito saideiras. Os copos são volúveis como nossas perso­nalidades e depois do primeiro sim os outros vêm com facilidade.

Ele quer ir ao banheiro, mas os dez metros que separam um do outro são longos demais: decide que o poste cumpre a função e ali mesmo põe para fora o que ele chama de “instrumento do prazer”. É o momento em que a cozinheira do bar está saindo, indo embora cansada após cumpridas suas funções laborais, e o vê naquela situação, exclamando a frase “ai, que nojo, tio, tá perdido?”, o que demonstra não só que a visão do instrumento do prazer foi para ela repugnante mas também que ela desconfia de sua sanidade. Tá perdido, tio?

Decidimos que a bebida era suficiente para aquela noite, afinal amanhã é quarta-feira e já está tarde. Vou levar meu amigo embora, mas o tio perdido resolve acompanhar e tomar mais uma saideira na casa do amigo. Dessa vez é saideira mesmo, ele promete, e todo mundo sabe que promessa de bêbado é tão sagrada quanto dívida de jogo.

No bar é fermentado, em casa é destilado: o grau aumenta. O amigo acha um vinil do Raul Seixas e bota a vitrola para funcionar. O tio perdido se apaixona pelo toca-discos. É antigo e bastante vagabundo (o aparelho), acompanhado de algumas caixas de papelão de discos variados, indo de Sula Miranda a Paquitas (clássicos nacionais) e de O Clone Internacional a Rainha da Sucata Internacional (clássicos internacionais).

É com um brilho nos olhos que ele me fala do quanto gostou daquele equipamento e chego a desconfiar que nunca conheci alguém tão fanático assim por vinil. Eu particularmente acho bem chato aquele chiado característico, mas sei que tem bastante gente que alega que o som é mais “verdadeiro”. Sempre desconfiei que era saudosismo barato até ver o encantamento do tio perdido naquele momento.

Ele quer comprar a vitrola de mim. O fato de eu explicar que nem a vitrola nem a casa são de minha propriedade não o impede de fazer lances cada vez mais altos. Até que o amigo, que estava lá fora e não tinha acompanhado as ofertas, volta para a sala e aceita que eu feche negócio, desde que o tio perdido ofereça ao menos 300 reais. Nesse momento, os lances já estavam acima de 1500 reais, o que faz com o que o negócio seja fechado instantaneamente.

Como as coisas valem o va­lor que damos a elas, o tio perdido sai de lá feliz, o carro abarrotado de discos variados, serão noites aconchegantes ao som de Nalva Aguiar, tomando um vinho suave paranaense especial da região vinícola de Large Field, o inverno está chegando e nada como o conforto de seu lar, escutando aquele vinil especial e pensando nas oportunidades da vida que deixamos passar por medo ou comodismo.

No dia seguinte, já pela ma­nhã, ele anuncia na internet que está vendendo um toca-discos.

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