Silêncio

Facebook
LinkedIn
WhatsApp
Telegram
Email

Conto ao médico que já tem alguns meses que parei de fumar mas que passei a sentir um incômodo na garganta, como se eu tivesse engolido algo que ficou parado ali no meio do caminho. O médico, muito tecnicamente, chama o objeto de Um Corpo Estranho, concordo com ele, é isso mesmo, doutor, o senhor é bom nisso, é realmente uma sensação de que há Um Corpo Estranho atrás daquele ossinho do meu pescoço, o ossinho que uns chamam de Gogó e outros de Pomo de Adão, eu que não sou muito religioso chamo de Gogó. O doutor me manda sentar na outra cadeira, era tão óbvio que isso aconteceria, penso que eu já devia ter ido diretamente para essa outra cadeira quando entrei. Ele usa um aparel ho que parece uma antena de rádio VHF, esse tipo de radinho chinês que se popularizou bastante nos últimos anos e que capta a frequência da polícia, não que eu esteja escutando a frequência da polícia ultimamente, não estou, longe de mim, porém co­nheço o rádio porque já vi anúncio de venda na internet, e a antena é comprida, preta e fina. No caso do aparelho clínico há também uma câmera na ponta, é a imagem que essa câmera produz que estou vendo no monitor quando ele enfia aquilo no meu nariz, que agonia, vai empurrando até chegar na garganta, a gente sempre escuta falar que ali dentro da cabeça é tudo conectado mesmo, os buracos e vias, mas essa visão do caminho todo sendo feito dentro da minha cara foi um tanto reveladora. Minha alma científica se encheu de pra­zer, mas minha carne humana logo ficou a um passo do desespero, já não bastasse eu ter Um Corpo Estranho preso atrás do ossinho, agora a antena de rádio chinês se unia a ele para trancar minha passagem de ar. Estou concentrando toda a energia em manter a calma quando ele alegremente começa a me dizer que está mesmo lesionado ali, já aproveita para começar a detalhar, sorrindo, a explicação de como aquilo acontece, eu respeitosamente empurro seu braço com o aparelho, torcendo de leve seu dedo, o doutor não gosta e me olha meio bravo mas tira a antena de dentro do meu crânio, presumo que seja caro o equipamento, ele deve ter ficado com medo que eu quebrasse, verifica a anteninha, mas não está quebrada. Meio emburrado, termina de fazer seu trabalho sujo e determina: tome esses remédios aqui e fique sessenta dias sem cantar. Dava pra sentir, no fundo, uma ameaça: senão você vai volt ar aqui e vou fazer isso novamente. Aparentemente a culpa não é de nenhum objeto externo, eu mesmo é que consegui me machucar sozinho. Decido que dessa vez vou cumprir rigorosamente as ordens médicas.
Hoje faz sessenta dias que estou desrespeitando as ordens médicas.

 

Publicado na edição 1101 – 22/02/2018

Silêncio

Compartilhar
PUBLICIDADE