Rael

Facebook
LinkedIn
WhatsApp
Telegram
Email

Bato à porta de forma ritmada e imagino que na sala, entre brinquedos coloridos e pequenos instrumentos musicais (entre eles uma lata de leite que se tornou uma bateria) está Rael, descobrindo a cada segundo um milhão de novas coisas. Rael ainda não tem nem um ano e, quando a porta se abre, olha para mim, curioso, para no instante seguinte abrir seu sorriso.

Sento-me junto a ele e pergunto como foi seu dia. Ele não responde, já que ainda não sabe falar. Falar fica para depois: no momento, Rael se preocupa em aprender a andar e já percebeu que o primeiro passo (antes de dar o primeiro passo) é conseguir ficar em pé sozinho. Estende sua mão, procurando a minha para se apoiar e ficar alguns segundos numa espécie de dança característica dos bebês nessa fase. Cai sentado, novamente, para recomeçar o processo. Não é fácil ficar em pé.

Deram a mim o título de padrinho, e, por consequência, o de compadre. Compadre significa “co-pai”. É como um co-piloto, com a diferença que, nesse caso, o “co-pai” é quem está sendo pilotado, embora às vezes pense o contrário. Sou feliz com esse título: é provavelmente o mais próximo que jamais chegarei do título de pai, e por isso devoto a Rael todo o amor que tenho — é o que eu estou pensando, emocionado, quando ele ri e me bate no rosto com uma colher.

“Não”, eu digo, e ele me olha com curiosidade, repetindo o gesto para saber se o “não” se refere a isso mesmo. Quando percebe um padrão em minha repreensão, sorri. Tudo bem não ser autorizado a bater nas pessoas com uma colher, desde que entenda o significado do que estou dizendo.

Eventualmente fico sabendo que ele descobriu algo novo: bater palmas, repetir alguma sílaba aleatória ou escalar o berço. Lembro que, quando ele estava prestes a nascer, vi um documentário sobre bebês. Dizia lá que nos dois primeiros anos de vida a pessoa aprende mais do que aprenderá em todos os outros, percentualmente falando.

Eu, que já passei para o lado da vida em que tudo se aprende com dificuldade, neste lado onde reinam os ranzinzas e os conformados, cinzas, adequados, bem vestidos, responsáveis, só torço (e oraria, se acreditasse) para que Rael seja um desajustado — porque ajuste, Rael, neste mundo, é doença.

Canto para ele um pedaço de música do Bowie, na esperança de que alguma parte do seu cérebro grave a melodia e o induza a gostar de Bowie no futuro. Hoje ele parece gostar, e talvez só porque ao mesmo tempo que canto eu o suspendo para cima, fazendo dele um avião ou um astronauta. Ground control to Major Tom… Sabia, Rael, que essa foi a primeira e única música gravada na Estação Espacial Internacional? Você bem poderia ir pra lá um dia e me mandar uma foto da Terra, ou quem sabe gravar a segunda música.

Ou virar bailarino, padeiro, bombeiro, gari, prefeito, caixeiro-viajante, enrolador de motor, motorista, médico, caixa de mercado (como era o sonho de criança de sua mãe), auxiliar de serviços gerais: se nada disso der certo, você ainda terá tudo pela frente. Porque não existe um momento em que você percebe se “deu certo” ou “deu errado”. Não há um ponto em que de descobre o que aconteceu — está acontecendo, sempre. Nunca se é, mas se está.

E não importará, nunca, o que você se tornou ou queira se tornar: sempre haverá minha mão estendida, seja hoje para te apoiar, seja amanhã para pedir seu apoio: porque a cada dia é mais difícil ficar em pé, Rael.

Compartilhar
PUBLICIDADE