A cirurgia

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A avó, sentada no sofá da sala, vendo TV, reparou que a neta tinha uma expressão estranha no rosto quando passou pela terceira vez em silêncio rumo ao quarto, claramente tentando não levantar suspeitas. A avó sabia que se a criança estava quieta era porque algo estava errado.

A neta, de sete anos, tinha ido buscar sua máquina de costura que, apesar de ter sido feita para crianças, tinha uma agulha real, que costurava de verdade e podia até ser útil para pequenos reparos. Outros tempos.

Não estava indo costurar nada, todavia. Ou melhor: não estava indo costurar um tecido. Minutos antes, brincava no pátio de casa com uma amiga. Subiam no monte de areia, andavam de bicicleta, pulavam corda. Havia uma proibição: elas não deveriam, em hipótese alguma, subir no muro. Aquele tipo de muro com uma cerquinha em cima, com pontas de metal afiadas no topo.

Mas memória de criança é uma coisa complicada, e a proibição expressa acabou sendo esquecida. A amiga subiu no meio muro, o braço passado por sobre a grade, perigosamente apoiado nas pontas metálicas. Quando o pé falseou.

A física explica aqueles sujeitos indianos que deitam sobre uma cama de pregos da seguinte forma: como os pregos estão muito próximos, o peso do corpo sobre eles é distribuído de maneira uniforme, fazendo com que a pressão exercida sobre cada ponta não seja tão grande a ponto de romper a pele. Isso seria diferente se a pessoa deitasse sobre um único prego. Nesse caso, todo o peso se concentraria em um só ponto, causaria uma séria lesão quando o prego perfurasse o corpo.

A amiga estava com o sovaco (axila?) sobre a ponta de metal afiada. E quando fez menção de gritar, a neta rapidamente lembrou que isso não poderia acontecer, já que o ferimento foi causado por uma atividade proibida. Curioso como a memória voltou a funcionar.

Há agora uma amiga sangrando, uma avó brava e um segredo a ser mantido. Toda a calma do mundo, como é comum nos socorristas, e a neta vai tranquilamente até o quarto, ver se encontra fita crepe. É a primeira ideia para estancar o sangramento. Volta, passa a fita no sovaco da amiga, que segura o choro, ciente de que precisa fazer sua parte para manter o sigilo.

Até funciona por um tempo, mas logo o sangue acha espaço e começa a escorrer através da fita. É quando a neta sabe que uma solução mais definitiva precisa ser encontrada. E decide fazer ali mesmo uma sutura, quando lembra de sua máquina de costura.

A avó se levanta do sofá quando vê a expressão da neta e, sorrateiramente, vai até a janela: a amiga com o braço levantado, a neta segurando a parte de cima da máquina contra o sovaco da amiga, ambas com o semblante grave que precede a dor, a própria e a do outro.

Nunca saberemos se teria dado certo. Aos gritos, a avó põe fim ao que poderia se tornar uma experiência inovadora na medicina.

 

Publicado na edição 1095 – 11/01/2018

A cirurgia

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