Vencendo o preconceito pela arte

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Vencendo o preconceito pela arte

EDIÇÃO ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO – 130 ANOS

No dia em que uma das mais importantes ativistas pelo direito da mulher negra, Lélia Gonzales, completaria seu 85º aniversário tivemos o prazer de entrevistar uma cidadã honoraria de Araucária com muito orgulho, a arte educadora, pós graduada em Leitura Dinâmica Infantil e Juvenil, Eva Maria Coller, de 72 anos, que também é militante pela causa da igualdade racial.

Se você achou a formação dela diferente, saiba que Eva também é atriz, cantora, bailarina e representante de um importante movimento social de divulgação dos valores e da cultura africana. Natural de Telêmaco Borba, morou em várias cidades, inclusive em São Paulo quando cismou que seria freira para trabalhar como missionária na África, estudando durante um ano em um convento.

Mudou-se para Ponta Grossa para trabalhar de babá, conheceu seu marido, José Coller e por lá se estabeleceu. “Em 1976 eu vim visitar meu irmão que trabalhava na Cocelpa e morava pertinho do Seminário São Vicente, achei a cidade tão pitoresca que imediatamente me apaixonei e decidi que aqui iria ficar”. Eva conta que o que a atraiu, principalmente, foram as ruas de paralelepípedos, por onde ainda circulavam cavalos e carroças.

Eva convenceu o marido, que trabalhava com construção a mudar para Araucária, alugaram uma casa na Rua Santa Catarina, no Jardim Iguaçu e começaram a escrever sua nova história. “Confesso que no começo foi difícil, eu negra casada com um alemão em uma comunidade europeia, tive até dificuldade para alugar um imóvel, foram uns dois anos até ser aceita”, conta.

Eva lembra que assim como eles, muitas famílias se estabeleceram na cidade, com o início das atividades da refinaria da Petrobrás e a instalação de novas empresas na região industrial, inclusive ela até reencontrou amigos de infância que também se mudaram para a cidade. “Eu vi nascer os conjuntos Maranhão, Manoel Bandeira e Tayrá, foi um boom econômico, com oportunidades de trabalho e prosperidade para todos, favorecendo meu marido que trabalhava com construção”.

Enquanto José Coller trabalhava, Eva levava uma vida tranquila, cuidando da casa, dos três filhos e cultivando seus sonhos em segredo, até que em 1982, a família foi prestigiar a inauguração do Parque Cachoeira. Entre várias atividades culturais e de lazer, a apresentação de uma peça de teatro dirigida por Glaucio Karas e Luiz Biscaia, chamou sua atenção. “Eu fiquei encantada com aquilo, finalmente tinha assistido a um espetáculo e realizado um sonho de infância”.

Eva explica que quando menina, na Vila Operaria onde morava, ela ouvia no rádio as novela, as dramaturgias e tentava reproduzir nas brincadeiras com as outras crianças. “Eu comecei a escrever e dirigir as peças de teatro, com o tempo os adultos e outras crianças se reuniam para assistir, mas eu não tinha noção do que estava fazendo, era tudo instintivo, e quando eu assisti aquela apresentação no palco montado no Parque Cachoeira, toda aquela veia artística que pulsa em mim, aquele sonho de criança se reacendeu”.

Nesse ponto da entrevista, Eva começa a narrar o que sabia de sua origem: seu bisavó foi sequestrado em Angola para ser escravizado em uma fazenda de café em Minas Gerais, quando sua avó nasceu já vigorava no Brasil a Lei do Ventre Livre. Segundo ela, sua avó sempre evitou falar sobre o que sabia ou viveu no período da escravidão até a libertação de todos os escravos. “Ela queria nos poupar, proteger a mim e ao meu irmão de todo aquele sofrimento”.

Retomando ao sonho de ser atriz, alguns anos depois daquela apaixonante apresentação no parque e de outras peças, que Eva teve a oportunidade de assistir, incluindo o Show de Calouros, que os jovens realizavam no teatro do Seminário, Eva soube de um curso de teatro para a comunidade promovido pelo Gláucio e o Luiz e, junto com seus filhos, se inscreveu para participar. “No final do curso eu fui selecionada para participar da peça “Pelo Verde que nos Resta”, que seria apresentada na inauguração do Teatro da Praça. A personagem de Eva foi a primeira a aparecer para o público e ela se tornou a primeira atriz negra de Araucária.

A partir daí outras oportunidade surgiram e a recém descoberta atriz passou a exercer outras atividades culturais. Dona de uma voz muito expressiva, Eva começou a cantar em eventos públicos e apresentações privadas, inclusive em casas de show em Curitiba. Como integrante do grupo “Gralha Planta, Araucária Canta”, participou de diversos festivais de músicas, como o Festcar (Festival da canção de Araucária), acumulando muitos prêmios.

Eva foi convidada a trabalhar no Teatro da Praça, fez um curso de especialização de teatro e passou a dar aulas pelo projeto Semeando Artes, na escola do Guajuvira. Atuou por 16 anos na prefeitura municipal, passando por diversas secretarias com ênfase na Cultura e trabalhou como voluntária na Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais).

Quando saiu da prefeitura, ela retomou seus estudos na Educação de Jovens e Adultos para terminar o segundo grau, com o intuito de dar aulas matriculando-se em seguida em um curso de magistério superior. Aos 63 anos de idade, ela concluiu sua pós graduação em Leitura Dinâmica Infantil e Juvenil.

Sempre em busca de conhecimento, Eva fez outros cursos e no ano de 2014 entrou para o projeto “Mulheres da Paz”, do Governo Federal, que capacitava mulheres ativas na comunidade para atuarem como mediadoras sociais, quando participou de um curso técnico em reabilitação e dependência química.

Entre as atividades sociais e culturais que ela realiza, destaca-se o trabalho nas escolas do município com o projeto Cor da Cultura, atendendo a Lei 10.639/03, alterada pela Lei 11.645/08, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio. “Realizo esse trabalho de maneira voluntária, as escolas agendam e eu vou até alunos e professores, levar por meios das artes plásticas, conteúdo sobre a cultura africana e a sua influência nos costumes do Brasil, como na música, na dança e na alimentação”, explica.

Ativismo

O mais recente projeto defendido pela Eva teve origem em 2017, quando a confeiteira Janete Martins sofreu, durante vários meses, uma série de ofensas racistas de forma anônima. O caso teve bastante repercussão na imprensa e ainda está em andamento na justiça.

Essa sequência de crimes de ódio contra a Janete, uniu diversas organizações do movimento social negro para a criação do Fórum de Combate ao Racismo de Araucária, com o objetivo de promover a igualdade racial. No dia 13 de maio, o grupo realizou a Primeira Caminhada de Combate ao Racismo, culminando com um Ato Público pela Igualdade Racial.

Eva explica que o Fórum tem a finalidade de proteger a comunidade negra, para que outros crimes dessa natureza sejam combatidos e punidos, mas acima de tudo conscientizar jovens e adultos da importância de tratar seus semelhantes como iguais.

Por tudo o que ela representa, não apenas para a comunidade negra, mas por ser uma figura importante no cenário social e cultural da cidade, no ano passado a jovem senhora recebeu duas importantes homenagens: Cidadã Honoraria de Araucária, concedida pela Câmara Municipal de Araucária o prêmio Melhores do Ano – Destaque Cultural, em evento promovido pela Única Comunicação. Eva recentemente ficou viúva e aos poucos retoma a alegria de viver e os seus projetos sociais e culturais.

“Eu sou muito grata por tudo que vivi nessa cidade, que eu escolhi para chamar de minha, onde criei meus filhos e netos. Se hoje sou agraciada com essas homenagens é porque fui acolhida, respeitada e ouvida, no começo não foi fácil, algumas vezes precisei me impor, mas quem disse que seria? Ainda estou me recuperando da perda recente do meu marido, e quero neste ano voltar a abraçar meus projetos e enquanto eu tiver saúde, ajudar a contribuir por um mundo que respeite as diferenças e promova a igualdade”.

Texto: Rosana Claudia Alberti

Foto: Everson Santos

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